Questionário

Tuesday 24 February 2015

A última lição: A economia e os doentes terminais

O falecimento do meu pai no passado dia de São Valentim foi para mim uma enorme perda. Ele era não só um pai querido, mas também o meu herói e ídolo. Nas suas últimas horas de vida deixou-me mais uma prova do seu amor ao esperar pela minha visita antes de partir.

Desde que aos quinze anos partiu sozinho para Lisboa procurando escapar à pobreza da sua aldeia natal, trabalhou incansavelmente para dar aos seis filhos a educação que ele não tivera. Apesar de não ter concluído a escola primária, recordo-me como ele estudava matemática de forma autodidata para poder ajudar-me a resolver os problemas na escola primária. Foi também ele quem, sem saber de economia, me aconselhou a optar por economia na universidade.



A Serra da Estrela que o viu nascer e morrer despediu-se dele com este arco-íris, o mais bonito que já vi. E, também ele, na forma como partiu me deixou mais uma lição de economia, tal como tantas vezes o fizera ao longo da sua vida de trabalho.

Um mês e meio após ter completado 96 anos de idade sofreu uma trombose intestinal que lhe seria fatal. Dada a sua idade avançada, os médicos acharam que uma intervenção cirúrgica tinha pouca probabilidade de sucesso e como ele não estava consciente chamaram a família para ser ela a decidir se queria deixá-lo morrer sossegadamente ou se queria tentar a operação. Foi uma decisão muito difícil.

Após o esclarecimento dos médicos sobre o sofrimento previsível no pós-operatório, a probabilidade de sucesso e o número de meses adicionais de vida que teria se a intervenção tivesse sucesso optamos pela operação.

É importante salientar que não tivemos de ter em conta qualquer outra consideração que não fosse o bem-estar do doente (fosse de natureza financeira ou familiar) porque estávamos num hospital público financiado por via orçamental. Se estivéssemos num hospital privado seria impossível ter esta liberdade de decisão sem intervenção da companhia de seguros.

Esta liberdade de decisão em relação ao prolongamento do tratamento dos doentes terminais é por vezes debatida por filósofos e economistas em conjunto com outras decisões difíceis sobre eutanásia, suicídio assistido, morrer em casa ou a qualidade da morte, mas poucas vezes se discute o enquadramento institucional que condiciona a decisão em tais matérias, nomeadamente a opção entre sistemas de financiamento da saúde através de seguros ou de dotações orçamentais.

As modalidades de financiamento são porventura mais decisivas do que a escolha entre hospitais operados pelo sector privado, público ou misto e é apenas sobre essas que irei debruçar-me.

Teoricamente podíamos ter seguros ilimitados, mas estes apenas estariam ao alcance de uma minoria. Por isso, com exceção dos Estados Unidos, a maioria dos países desenvolvidos optou por um sistema baseado numa única entidade pagadora dos cuidados hospitalares que pode estar enquadrada no orçamento de estado ou ter um orçamento próprio financiado por contribuições obrigatórias. Este orçamento pode cobrir a totalidade dos custos hospitalares ou apenas uma parte (geralmente mais de 70%).

É evidente que a oferta de cuidados hospitalares é menor nos países pobres e pequenos. Por isso, nesses países o financiamento através de contribuições tem de ser suplementado por transferências orçamentais de forma a assegurar que em situações de perigo de vida todos têm acesso aos tratamentos disponíveis, independentemente das suas contribuições.

É também normal que em contexto de crescente inovação tecnológica os recursos afetos à saúde sejam sempre insuficientes para fazer tudo o que é teoricamente possível para salvar cada paciente. Por isso, são geralmente bem-vindos os seguros privados voluntários que permitem a alguns optar por novos tratamentos mais dispendiosos ou melhores amenidades de internamento.

No entanto a utilização desses seguros para decidir sobre os tratamentos nos casos de vida ou morte coloca os médicos e as famílias dos pacientes perante um tipo de decisão eticamente intolerável. Isto é, retira-lhes a possibilidade de decidir exclusivamente com base no bem-estar do paciente tal como fizemos no caso do meu pai.


Em suma, na forma como nos deixou, o meu pai relembrou-me que a análise custos-benefícios e a teoria económica podem ser necessárias na análise dos sistemas e na alocação de meios à saúde, mas não podem guiar as decisões individuais sobre a vida e a morte dos doentes terminais.

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